Mudanças entre as edições de "A terceira margem do rio"

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'''Ulisses Capozzoli'''
 
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Edição das 11h27min de 1 de agosto de 2016

Ulisses Capozzoli

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Prefácio

Alguns pontos devem ser considerados em relação a este livro para que ele seja bem compreendido por seus eventuais leitores. E o primeiro deles está relacionado ao título: A terceira margem do rio – as águas do Ribeirão das Antas e as histórias que elas contam. Se um rio tem forçosamente duas margens, por que falar em três? Aqui se faz, evidentemente, uso da metáfora, um dizer mais amplo que o restrito a meia dúzia de justificativas. Elas podem parecer apropriadas, mas só diminuem o entendimento de uma história que, como qualquer outra, tem suas raízes nos dois lados do tempo: passado e futuro. Este é um recurso dos humanos para localizar o agora. Ainda que este tempo presente flutue como efemeridade no rio indizível do conto de João Guimarães Rosa, que também atende pelo título de A terceira margem do rio.

Originalmente, este livro deveria restringir-se a um rio, o Ribeirão das Antas, porque uma cidade separada de um rio não faz sentido. Mas tratar de um rio, abstraindo uma cidade à margem dele, também não é sensato. Então, a certa altura, ficou claro que a cidade, Cambuí, num primeiro momento, tomou forma em uma margem distante do rio, a primeira. Então aproximou-se dele, na segunda, e se fixou na oposta: a terceira. Esse é o propósito e o sentido de falar de uma terceira margem de um rio.

E para falar de um rio, não basta restringir-se a ele. Existem muitos tipos de rios e cada um deles deve ser considerado para permitir uma comparação. Só então será possível saber de que rio se fala. Uma característica inseparável de um rio – ao menos de um rio convencional, porque alguns não são necessariamente assim – são as suas águas. De onde vêm as águas que formam um rio? Essa é uma pergunta que não costuma ser feita, mas as águas se formaram na infância do Universo e isso também merece ser contado, mesmo que brevemente. Caso contrário, simplesmente não estaríamos aqui.

Além disso, um rio, mais que via de tráfego, é um indicador de rumos a gentes interessadas em penetrar o desconhecido, como, a certa altura, foi o Sertão de Cataguás, o antigo nome do que é hoje Minas Gerais. Os primeiros exploradores vieram em busca do que chamaram de “negros da terra”, a mão de obra cativa, representada pelas populações indígenas. Foram seguidos pelos que cobiçavam o ouro e a riqueza rápida com que ele sempre acena. E essa é a essência da invenção das Minas Gerais pelas bandeiras paulistas. Nos primeiros tempos, Minas Gerais e São Paulo foram um corpo único. O ouro os separou.

O encontro do ouro estimulou uma corrida insana – e o desejo de impor leis que assegurassem tributos aos que se julgaram merecedores dele, aqui, a Coroa Portuguesa – e os conflitos que ela criou e instalou: a corrupção dos costumes, os enfrentamentos armados, as mortes e os ressentimentos. Juntos, esses fatos levaram ao desejo de autonomia.

A corrida, que se seguiu ao descobrimento do ouro no leito de rios – sempre os rios – trouxe para Minas um fluxo de ocupação, com a formação de proto-vilas, movimento paradoxalmente intensificado pela exaustão das promessas de riqueza, ao final desse ciclo. Quem retorna é desenraizado e, nessa condição, pode fixar-se a meio caminho de um pretenso destino. E o percurso dos retornados, quando o ouro se esgota, identifica não só a origem de uma cidade, como Cambuí, mas muitas outras. E também a história de bairros que, no caso de Cambuí, incluem Roseta, Rio do Peixe, Três Irmãos e São Domingos, sempre citados como precursores da cidade. Mas nunca com suas origens identificadas. Aqui emerge a ideia de um processo histórico e de ocorrências que parecem apenas fortuitas.

Quando um povoado se instala, e ao fim de certo tempo atinge a condição de cidade, esse acontecimento não é um ato isolado na instância física ou histórica do mundo. É uma intervenção na Natureza, no primeiro caso, e uma caixa de ressonância, no segundo. A partir daí o que ocorrer no mundo, de muitas maneiras, terá sua sonoridade expressa nesse local antes ermo. E o cinema é evidência disso. Apenas 17 anos após a sessão pioneira dos irmãos Lumière, na França, o cinema instala-se na cidade, para nunca mais apagar suas luzes.

A cidade é – por seus ocupantes – a presença de amores e ódios em escalas e intensidades flutuantes. Amores não são apenas os dos amantes, embora esses sejam quase sempre priorizados. Mas há um amor pelo conhecimento, pela amizade e liberdade, um amor à Natureza, às artes e às ciências, entre as infinitas maneiras de amar. E há a contrapartida disso, os ódios e os ressentimentos. Em Cambuí, eles se expressaram, por exemplo, no começo da noite de 5 de abril de 1923, com o assassinato do juiz Carlos Cavalcanti, após longa e indesejável fermentação autoritária. Ocorrências como essa quase sempre sintetizam certos períodos de tempo e surpreendem a cada uma das pessoas. Mas, depois disso, a vida volta ao ritmo cotidiano. O que sobra são fragmentos e fragmentações. Se há um registro mais ou menos metódico, eles compõem a História. Na falta disso, cresce o espaço da indiferença.

O professor Levindo Lambert, o “Rosa”, em seu Biogeografia de uma cidade mineira, lamenta, com razão, o desprezo local pela História, mas esse esquecimento tem seus limites, o que significa dizer: tem seu preço. Se chegar a determinado ponto, desestrutura uma sociedade. Os humanos têm uma ancestral necessidade de história: de origem e destino, talvez para amenizar o que parece ser um sentimento profundo de orfandade cósmica. A solidão de que nos ressentimos sob as estrelas, exposta de forma perturbadora pelo físico, filósofo e matemático francês Blaise Pascal: “o silêncio eterno desse espaço infinito me assombra”.

E a indiferença – a desconsideração histórica com a água – é um exemplo dessa forma de alienação. Em Cambuí, o rio que atraiu a cidade e a alimenta ainda hoje, morre a cada dia. A História, para os humanos, é a que pode ser chamada de “toda a História”. Aquela que vem da origem do Cosmos, passa pelo aparecimento da vida e do ciclo das glaciações, entre outros eventos, antes de chegar à vida de cada dia. Mas a vida de cada um dos dias, de muitas maneiras está condicionada por esses longos fluxos de tempo. Ainda que, com os sentidos entorpecidos pelo que pode parecer monotonia, um humano torne-se insensível a isso tudo. Uma grande pena.

Por todas essas razões, este livro faz incursões mais amplas. Mesmo com fluxos de tempo expressos de maneira sintética: menos que um piscar de olhos do tempo cósmico. Assim, chega à construção de uma nação, com a riqueza de eventos e as contradições típicas de processos dessa magnitude. Então, envereda pela história de uma província, depois de um estado – Minas Gerais – e mergulha nos acontecimentos de uma cidade. E, nela, espalha-se por uma multidão, que reúne cada um de nós. Mesmo aqueles separados por uma barreira do tempo. Os que nos deixaram, antes mesmo que tivéssemos chegado. O caminho que o livro escolheu para percorrer esses caminhos – e que o autor não teve como refutar – não é linear como o caminhar por uma rua. É um deslocamento interativo, como se fosse o caso de um observador caminhar, ao mesmo tempo, por mais de uma rua, registrando ocorrências que, de muitas maneiras, se superpõem.

Mas mesmo o livro, na sua auto-manifestação, deve curvar-se a certas exigências. Entre elas a necessidade do depoimento de observadores, que, generosamente, concederam tempo precioso a registros que permitiram a elaboração do relato que segue pelas páginas à frente. O autor deseja agradecer, a cada um deles, por esse privilégio em compartilhar ricas experiências emocionais. Como se, nesses encontros, tivéssemos embarcados na máquina do tempo imaginada por George Herbert Wells, também em 1895, data do nascimento do cinema.

O autor agradece também às pessoas que forneceram documentos para este trabalho, como ocorreu com Luiz Evangelista Rangel Padilha, Tito Lívio Meyer, Amélia Fanucci, Maria Aparecida Chiaradia Finamor, Zélia Finamor, Maria José Alvarenga “Pitucha” e José Roberto Moraes. Sem falar que boa parte dos que concederam seus depoimentos também fizeram empréstimos de fotografias de época, indispensáveis ao relato de muitas das histórias consideradas. Eurico “Grilo” Wagner Silva e Tito Lívio Meyer foram responsáveis pelo paciente trabalho de coleta e escaneamento dessas imagens. E Adelson Jr. guiou mais de uma incursão pelas montanhas vizinhas, no esforço de localizar a nascente do Ribeirão das Antas. Flávio Carvalho Ferraz despendeu tempo escasso para, pacientemente, ler os originais, anotar grafias desencontradas e apontar outros pequenos problemas que certamente incomodariam um leitor. Esses são defeitos a que o autor fica cego, a partir de certo momento. Mas, se a versão final ainda tiver alguma improcedência, o que é possível num caso como este, elas serão todas de responsabilidade exclusiva do autor.

Uma particularidade. Este livro pode ser lido a partir de qualquer um dos capítulos e não necessariamente de forma linear, desde o início. Cada um dos capítulos tem certa autonomia em relação aos demais. A leitura, na sequência aqui estabelecida, no entanto, traz uma noção de processo histórico e isso é fundamental para a inteligibilidade de ocorrências que, de outra forma, poderiam parecer fortuitas e fora de compreensão. O acaso, evidentemente, não está desconsiderado, o que significa dizer que ele se manifesta, mas não necessariamente predomina. Essa situação, de certa maneira, pode ser representada pela famosa discussão entre os físicos de origem alemã Albert Einstein e Werner Heisenberg. Quando Einstein disse sua famosa frase “Deus não joga dados”, Heisenberg contestou que “não só joga como se diverte com isso”.

A posição assumida neste livro é que Deus, às vezes, joga dados. E se diverte com isso. Finalmente, é preciso acrescentar que esta é apenas uma história, o que significa dizer que outras interpretações dos fatos considerados são possíveis e mesmo desejáveis. Certamente, algo significativo neste momento é a coleta dos depoimentos do grupo de pessoas ouvidas. Elas não durarão para sempre, como nenhum de nós irá durar. Então, o registro dessas memórias prevalecerá como contribuição para uma história que poderá emergir no futuro. O que nos torna duplamente gratos a cada uma dessas pessoas. Ulisses Capozzoli, 13 de maio de 2016

The negro speaks of rivers

“Conheço os rios.

Conheço rios tão antigos quanto o mundo,

mais velhos que o fluxo de sangue nas veias humanas.

Minha alma é tão profunda quanto os rios.

Banhei-me no Eufrates, na aurora da civilização.

Construí uma cabana às margens do Congo,

e suas águas me cantaram canções de ninar.

Vi o Nilo e construí pirâmides.

Minha alma se tornou tão profunda quanto os rios”.

Langston Hughes – poeta negro americano (1902-1967)

Parte 1 - OS ANTECEDENTES

Um fio d’água verte para o norte

O Ribeirão das Antas, com nascente identificada acima do bairro da Roseta – próximo ao divisor de águas que separa as bacias do Piracicaba-Alto Tietê ao sul, e Rio Grande, ao norte – não deve esse nome ao acaso. Os nomes de acidentes naturais, nos movimentos de exploração em Minas Gerais e outras regiões, sempre refletiram condições observadas, e isso é frequente em relação aos povos indígenas. Evidência disso é a denominação “Mantiqueira”, para o maciço montanhoso que se inicia próximo a Bragança Paulista e se estende, por pelo menos 500 km, até Barbacena, serpenteando por São Paulo, Rio de Janeiro e em muito maior extensão por Minas Gerais. Essa palavra tem origem no tupi amana (chuva) e tykyra (gota) para expressar “gota de chuva”. Povos indígenas do tronco Tupi, que ocupavam a região antes do avanço europeu, interpretaram intuitivamente o fenômeno produzido pelas nuvens carregadas de umidade que chegam do Atlântico e, bloqueadas pelas elevadas altitudes da Mantiqueira, formam névoas densas que resultam em “gotas de chuva”. Apenas a desatenção, o descaso com a língua e a perda de raízes históricas não permitem que se compreenda, com clareza, o que relatam as palavras. O Ribeirão das Antas, ou Rio das Antas, como também foi conhecido em passado recente – quando suas águas eram mais volumosas, cristalinas e cardumes podiam ser vistos a olho nu deslocando-se pelo seu leito argiloso – abrigou um número significativo desses animais agora extintos, daí o nome que recebeu. Esse típico fluxo de águas de planalto tem nascente nas coordenadas 22º40’14.15” Sul e 46º07’12.47” Oeste, localizadas na Roseta – mais especificamente na Serra do Criciúma – ainda que a proximidade de um segundo ponto deixe alguma margem de dúvida, na avaliação via satélite feita pelo topógrafo Adelson Rodrigues da Silva Júnior.

Em Caminhos e Fronteiras, coletânea de artigos que ajudam a decifrar o Brasil, Sérgio Buarque de Holanda aponta que, no passado de exploração, “o valor dos rios estava menos em servirem de vias de comunicação do que meios de orientação”. E dá como exemplo disso o caso de um capitão-general de São Paulo – já à época de decadência do bandeirismo – Martim Lopes Lobo Saldanha. Em ofício envolvendo remessa de tropas para a região platina, Saldanha argumentava que algumas das vantagens oferecidas pelos rios estava em que os homens “banzavam [tinham saudade] do mar e preferiam marchar por terra, pescando, matando as caças que frequentavam as margens de água doce, banhando-se ao uso americano” [à maneira indígena].

O fato de fluir para o Norte, a partir de sua nascente na Serra do Canguava, no bairro da Roseta, pode ter feito do Ribeirão das Antas um importante indicador de rumos em direção às profundezas do Sertão de Cataguás, o nome antigo de Minas Gerais. Esse movimento de exploração/captura de mão de obra indígena “os negros da terra”, a partir do século 16, intensifica-se no seguinte com a descoberta do ouro. Nesse intervalo de tempo a vastidão de terras desconhecidas muda sucessivamente de nome: Sertão de Cataguás, Capitania de Minas Gerais, Província de Minas Gerais e, com a proclamação da República, em 1899, Estado de Minas Gerais.

O Ribeirão das Antas, agora reduzido a um diminuto fio d’água, teria proporcionado um conjunto de vantagens para os bandeirantes. Gente como Jacques Félix, que, em 1639, teria combatido indígenas no que é o hoje território mineiro da Mantiqueira. Fluindo para o norte, ao contrário do que ocorre com outros rios ao sul da Serra do Canguava, ele se articula em uma rede líquida para compor o Rio Grande, depois de desaguar no Itaim e com esse rio formar o Sapucaí-Mirim, depois o Sapucaí e então o Rio Grande. O Ribeirão das Antas, como demonstra seu nome, abrigou um numeroso grupo desses animais ao menos nos primeiros tempos, pois, registros mais recentes, falam da presença de jacarés em lagoas formadas por inundações de verão, mas nunca de antas. O que deve ter ocorrido é que esses animais foram abatidos já pelos primeiros exploradores. E não apenas para a obtenção de carne, mas também, e principalmente, pelo couro, com que eram confeccionados os gibões, vestimenta recheada de algodão e anteparo eficiente para as flechas de grupos indígenas agressivos à presença de desconhecidos. Os sapatos, e mais ainda, as botas, com que costumam ser retratados bandeirantes como Fernão Dias, eram um luxo à época e nunca utilizadas no sertão.

O mesmo Sérgio Buarque de Holanda, citando o jesuíta Ruiz de Montoya, diz que “há mais de um motivo para supor-se que, nas suas longas jornadas, bandeirantes e cabos de tropa andassem frequentemente descalços”. Montoya compara que “os paulistas, a pé e descalços, marchavam por terras, montes e vales, 300 e 400 léguas [1.800 e 2.400 km], como se passeassem pelas ruas de Madri”. Ao contrário das botas, proteção para os pés, o gibão, confeccionado com couro da anta, podia ser a diferença entre a vida e a morte.

Se no extremo-sul de Minas o Ribeirão das Antas pode ter facilitado o avanço de bandeirantes – aos menos os que provinham do Vale do Paraíba, dobrando para o norte na altura de Atibaia, sem falar de outras localidades como Sorocaba e Jundiaí, como indica o roteiro dos naturalistas alemães Spix e Martius – a habilidade indígena na orientação espacial será sempre de uso estratégico dos bandeirantes, ainda que, frequentemente, não reconhecido. Uma exceção a essa omissão sistemática está na obra de Nestor Goulart Reis, As minas de ouro e a formação das capitanias do Sul – que antecederam as descobertas em Minas Gerais – e evidencia a dependência dos europeus do conhecimento indígena, não apenas em relação a trajetos, mas também para garantia de alimentação e de remédios do sertão.

De acordo com Buarque de Holanda, o caminho dos Guaianás – grupo que povoou a vila de São Paulo – foi usado por Martim de Sá em sua expedição, em fins do século 16, ao sudeste de Minas Gerais. E, mais de três décadas depois, ainda era referência em uma petição de sesmaria apresentada por um certo Miguel Aires Maldonato e seus filhos. A permanência de numerosos caminhos, que da Vila de São Paulo de Piratininga conduziam a Minas Gerais, ou ao Sul, onde se estabeleceriam as primeiras reduções de guaranis, segundo o historiador “parece ter fixado, muito mais do que o rio Tietê”. O Martin de Sá a que ele se refere foi um português, capitão-mor de São Vicente entre 1620/1622 em meio a inúmeras atividades. Dos Guaianás, diz o historiador: “sabemos, por mais de uma referência, principalmente pelas atas da Câmara Paulistana, que eram andantes e sem pouso certo. Muito caminho percorrido depois, pelas bandeiras, foi aberto e trilhado inicialmente por eles, que teriam contribuído para “marcar de modo definitivo a fisionomia da terra por onde vagaram”. O conhecimento dos indígenas das áreas montanhosas do Vale do Paraíba também ajudaria os colonos de São Paulo de Piratininga na busca de “negros da terra”. Como se não bastasse, eles foram guias seguros para os caminhos do sertão.

Considerar uma perfeita superposição de caminhos ao longo do tempo, no entanto, em particular no caso de índios e bandeirantes, seria um equívoco. E isso porque os caminhos primitivos poderiam, por diversas razões, sofrer uma interrupção temporária ou mesmo mais definitiva. Mas, argumenta Buarque de Holanda, “a escolha cuidadosa, pelos índios dos lugares mais apropriados ao trânsito, preservava ao menos a direção geral do traçado e garantia, nos lugares acidentados, a passagem obrigatória por determinados sítios como baliza ao longo do caminho”. Assim, o encadeamento de águas entre o Ribeirão das Antas, o Itaim – com nascente no sopé da Pedra de São Domingos –, o Sapucaí-Mirim e o Sapucaí foram sugestivos marcos de rumo a exploradores que seguiam para o norte, em direção ao Rio Grande e outros rios, inicialmente em busca de escravos, os “negros da terra”, como os índios escravizados eram conhecidos. Depois disso, à procura de ouro e diamantes. A Pedra de São Domingos, com seus 2.050 metros de altitude, emerge da paisagem como referência singular, com seu paredão de granito escuro, contraposto ao verde-oliva da vegetação densa que então cobria toda a encosta da Mantiqueira. Na altura de Estiva atual, depois de o Ribeirão das Antas ter fundido suas águas com as do Itaim, o Pico do Carapuça, conjugado ao São Domingos, também assegurava aos viajantes que caminhavam no rumo desejado. Evidência do acerto de rumos é o caso de dois tupinambás, citado por Buarque de Holanda, que “degredados da Bahia para o Rio de Janeiro, levados por mar, conseguiram, depois de fugir, tornar por terra ao seu país, caminhando mais de 300 léguas [1.800 km] através da mataria e de parcialidades hostis. Durante a noite eles marcaram as horas, em alguns lugares, pela observação das estrelas e das constelações. Durante o dia, pela sombra que o polegar deixa na mão”. Em relação ao Ribeirão das Antas, ponto de referência neste trabalho para a investigação da história de Cambuí – refletindo a história de Minas Gerais, São Paulo e mesmo do Brasil, em diversos momentos – é o caso de reconhecer que uma de suas controvérsias, a identificação de sua nascente – o ponto mais distante da foz – está estabelecida no bairro da Roseta que, como se verá mais à frente, é uma localidade que antecede mesmo a citação de uma localidade referida como “Camboy”. Até então havia dúvida entre dois pontos. O primeiro, já citado, nas coordenadas 22º40’14.15” Sul e 46º04’12.47” Oeste, na Serra do Criciúma, e uma segunda, nas coordenadas 22°40'56.67 Sul e 46°04'54.64 Oeste, ponto que se atinge ao final de uma estrada de terra batida, à direita de quem desce a Serra, próximo à divisa entre Camanducaia e Cambuí.

Até agora, a nascente estava pendente entre esses dois pontos, o que o trabalho de Adelson Junior estabelece a favor do primeiro caso, em que a distância até a foz, na barra do Itaim, soma exatos 14.531,5 metros, contra 13.528 metros para as coordenadas da Serra do Canguava. Com modestíssimo curso, o Ribeirão das Antas tem sua bacia hidrográfica inteiramente localizada no município de Cambuí, com área de 243,4 km².

Neste livro, o Ribeirão das Antas será citado tanto como referência estratégica para a edificação de uma cidade, como recurso alegórico para se referir à história de Minas Gerais, São Paulo e mesmo à história do Brasil. Mas, para tirar o máximo proveito desta abordagem, é necessário um pequeno conjunto de caracterizações, o que inclui a ideia do que, em última instância, define um rio, um riacho, um córrego e um ribeirão. Sem isso, fica perdida a possibilidade de uma reflexão acompanhada da experiência de “estranhamento”, a sensação de se dar conta de determinada situação como se vivida pela primeira vez, como se tivéssemos acabado de chegar ao mundo e os nossos olhos permitissem a primeira observação.

Com isso, e levando em conta a leitura de Sérgio Buarque de Holanda quanto aos rios como indicação de rumo – e que o ouro por trás da invenção de Minas Gerais aflorou primeiro no leito desses cursos d’água, o ouro de aluvião – certamente é o caso de esclarecer noções envolvendo esses fluxos dinâmicos que seguem, quase sempre, da terra firme para o mar. Comecemos com o naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire, em Viagem pelas províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais, a partir da seguinte constatação: “A província de Minas apresenta aproximadamente a forma de um quadrado. E como já tive ocasião de dizer, ela é dividida em porções muito desiguais por uma longa cadeia de montanhas que se estende do sul ao norte, matas que cobrem todo o lado oriental, enquanto a ocidental não apresenta, geralmente, senão pastagens”. Essa porção, detalha Saint-Hilaire, “é ela própria dividida, em quase todo o comprimento, pelo Rio São Francisco, rio majestoso, navegável em imensa extensão”. Outros rios, relata, “o Rio Doce, o Jequitinhonha e o Rio Grande oferecerão, um dia, os mais úteis meios de transporte à Província das Minas Gerais, que é ainda regada por uma multidão incrível de rios e regatos. Não só essa província é rica por seus diamantes e pedras preciosas, minas de ouro, ferro, chumbo, etc. como também pelas suas gordas pastagens, belas florestas e fértil território, que, segundo os lugares e altitudes, poderão produzir a videira, a cana de açúcar e o café; o cânhamo [cannabis sativa, a maconha, colhida verde empregada na produção de objetos que, no passado, iam de cordas a velame de navios] e o algodão; a mandioca, o trigo e o centeio; mangas, pêssegos, figos e bananas. Se existe alguma região que possa dispensar o resto do mundo, será certamente a Província das Minas, quando seus inúmeros recursos forem explorados por uma população mais densa”.

Para a maioria das pessoas, o conceito de um rio pode ser uma obviedade que dispense considerações, mas, na realidade mais profunda, as coisas são diferentes. Um trecho de Heráclito, do escritor argentino Jorge Luís Borges, certamente contribui para esse entendimento. O poema de Borges se desenvolve assim: “Que rio é este, por onde corre o Ganges? / Que rio é este, cuja fonte é inconcebível? /Que rio é este, que leva mitologias e espadas? /É inútil que durma. Corre no sonho, no deserto, em um porão. /O rio me arrebata. /Eu sou esse rio. /De matéria perecível fui feito, de um tempo misterioso. /Por um acaso, seu manancial está em mim. /Por um acaso, da minha sombra. Fatais e ilusórios, nascem cada um dos dias. ”

Na Natureza, um rio é formado por um fluxo de água, com nascente e foz, o que significa que ele percorre um trecho em terra firme – ainda que haja também o conceito de rios oceânicos e mesmo atmosféricos – e termina na foz: um outro rio de que é tributário, um lago um mar ou o oceano. Um rio – a menos que esteja morto, reduzido à presença de microrganismos como ocorre com muitos deles, sufocados pela poluição antrópica – é repleto de vida, como ocorreu no passado e, com muito menor expressão, ocorre ainda hoje com o Ribeirão das Antas. Em seu leito, até meados dos anos 1960, quando um processo incipiente de poluição se iniciou, vivia uma diversidade de espécies de peixes típicas da bacia do Rio Grande. E antes disso, às suas margens, bandos agitados de antas, ou tapir, como esses animais também são conhecidos, espreguiçaram ao sol e se refrescaram nas suas águas.

Um rio, não importa muito o seu volume, pode ser dividido basicamente em três porções ao longo do percurso entre a nascente e a foz: o curso superior, o médio e o inferior. O curso superior do Ribeirão das Antas está entre a nascente e o trecho inclinado percorrido até o bairro da Roseta. O médio integra o trecho abaixo, incluindo a passagem pela área urbana de Cambuí e, o inferior, à medida que se aproxima da barra com o Rio Itaim. A nascente, como referido anteriormente, é o ponto mais distante da foz, o que justifica a identificação desse ponto, no caso do Ribeirão das Antas, nas coordenadas 22º40’14.15” Sul e 46º04’12.47” Oeste e não em 22°40'56.67 Sul e 46°04'54.64 Oeste, ao final de uma curta estrada de terra batida, que parte da BR-381, na divisa entre Cambuí e Camanducaia, como se chegou a considerar.

Depois de se juntar ao Itaim e juntos comporem o Sapucaí-Mirim – reunidos em seguida às águas do Sapucaí – o fluxo do Ribeirão das Antas se soma a muitas outros e, em conjunto, desembocam na hidrelétrica de Furnas, onde já está o Rio Grande. Para o Rio Grande também correm as águas do histórico Rio Verde, do antigo sertão com esse nome, penetrado por bandeirantes que se encaminhavam às Minas Gerais pelo Vale do Paraíba, atravessando a Passagem do Embaú, nas proximidades da atual cidade de Cruzeiro. Este foi, segundo o argumento de Diogo de Vasconcelos (1843-1927), um dos mais respeitados historiadores mineiros, o caminho seguido por Fernão Dias e outras expedições, antes e depois do velho bandeirante. Pelo extremo sul de Minas Gerais seguiram bandeiras que preferiam a rota de Atibaia, onde se tomava o rumo Norte, sem falar de iniciativas, a partir de Sorocaba e outras localidades ao longo do Vale do Piracicaba e Alto-Tietê. Num primeiro momento, o bandeirismo havia se concentrado na captura de índios para suprir a carência de mão de obra na Vila de São Paulo de Piratininga. Ainda que esse povoamento tenha nascido, em janeiro de 1554, de uma instalação jesuíta – de que eram integrantes Manoel da Nóbrega e José de Anchieta – para a catequese indígena. Num segundo estágio – após a destruição de reduções indígenas por Raposo Tavares e mesmo Fernão Dias em territórios que, pelo Tratado de Tordesilhas, pertenciam legalmente à Espanha – as bandeiras irão dedicar-se à busca de ouro e pedras preciosas em Minas Gerais. Assim, atenderiam uma antiga expectativa da Coroa Portuguesa que cobiçava a mesma riqueza que a Espanha retirava, em ouro e prata, de seu território andino.

O curso superior do Ribeirão das Antas, como ocorre com muitos outros rios de planalto, exibe acentuada inclinação (gradiente), situação em que a erosão supera a sedimentação. No curso médio, quando atravessa o espaço urbano, erosão e sedimentação tenderiam a equilibrar-se não fosse a ação humana que interfere em ambos os processos, resultando quase sempre em acentuada sedimentação. Já o curso inferior é mais marcado pela sedimentação, com o arrastamento de solo de áreas desprotegidas de vegetação, incluindo as margens. A maior profundidade do Ribeirão das Antas, nos períodos de estiagem, agora, não supera 0,8 metro, segundo medidas tomadas ao acaso. No final dos anos 1930, quando era um garoto de 10 anos, Geraldo Nascimento, agora aos 87, recorda-se de que, mesmo na seca, descia o leito do rio, incomparavelmente mais largo que agora, com água até o pescoço, no trecho entre a ponte próxima à entrada Sul da cidade e a que integra o leito da rua Governador Valadares. Mas o rio, acrescenta ele, não era apenas mais largo, profundo e de águas transparentes. Ele também era uma fonte aparentemente inesgotável de vida.

Um ribeirão, segundo as definições da hidrologia, o estudo do deslocamento e distribuição de volumes d’água na Terra, é um fluxo maior que o de um riacho, mas sem o porte poderoso de um rio, ainda que possa ser confundido com muitos dos menores rios. O atual Ribeirão das Antas já atendeu pelo nome de Rio das Antas quando – no passado recente, com ampla cobertura vegetal ao longo de seu curso e ainda sem sofrer a violência da retificação de seu curso, em meados dos anos 1960 – suas várzeas inundavam com as chuvas de verão. Com todos esses impactos combinados, o rio, agora, já não permite a passagem de uma canoa, a pesca diversificada e uma biodiversidade que, se já havia perdido a presença das antas, ainda abrigava garças com a brancura de seus corpos, alimentando-se em áreas inundadas.

Os rios – e neste caso o Ribeirão das Antas não é exceção – caracterizam-se em três perfis longitudinais: de planície, planalto e montanha. No primeiro caso, o curso baixo é mais extenso que o médio e alto, casos em que estão incluídos o Amazonas, no Brasil, o Mississipi nos Estados Unidos e o Volga, o mais longo da Europa (3.668 km). O Amazonas (6.992 km) disputa com o Nilo, na África, o título de o mais longo dos rios da Terra, mas é o primeiro em volume d’água, recebendo a descarga de mais de 1.000 afluentes. O Amazonas é também o único com foz dupla: estuário e delta. O estuário forma uma boca única e é marcado por correntes e efeito maré que impedem a acumulação de detritos, o que ocorre tanto no Nilo quanto no Mississipi. Os estuários, em forma de triângulo, têm a base na direção ao oceano e o vértice voltado para o continente. Já o Mississipi é o segundo maior rio americano, curiosamente perdendo a primeira posição para o Missouri, um de seus afluentes.

Os rios de planalto, caso em que o Ribeirão das Antas inclui-se, ao menos comparativamente, têm seus cursos médios navegáveis. Registros do passado relatam casos de navegação por canoas no Ribeirão das Antas antes de suas águas minguarem e especialmente seu curso ser alterado. Os rios de planalto, além de parcialmente navegáveis, também exibem cachoeiras e corredeiras, caso do São Francisco, cuja nascente histórica o botânico e naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire estabeleceu na Serra da Canastra, no sudoeste de Minas. Medidas recentes e precisas, feitas com a ajuda de satélites de geoprocessamento, no entanto, estabeleceram esse ponto no Planalto de Araxá, no município de Medeiros, circuito da Serra da Canastra.

Os rios de montanha, ao contrário dos anteriores, têm curso superior mais extenso que o médio e o baixo e liberam suas águas rapidamente, como resultado de fortes inclinações. Neste caso estão os Isère e o Durance, nos Alpes Franceses, e o Salween, em Myanmar, a antiga Birmânia.

Finalmente, apenas para caracterizar melhor a natureza de um rio, são necessárias pelo menos duas outras considerações. A primeira delas é que um rio também depende de determinadas circunstâncias. O que se chama de rio no Sul do Brasil, pode não passar de igarapé no Norte. Um igarapé, na linguagem regional, é um pequeno rio. A palavra, de origem indígena, significa literalmente “caminho de canoa”. Além disso, existem pelo menos 20 tipos de rios, o que, à primeira vista, pode parecer surpreendente.

Um rio pode ser, por exemplo, alóctone, no caso de um fluxo que, ao cruzar determinada região, não recebe, nos cursos médio e inferior, as águas de qualquer afluente e depende apenas da alimentação do curso superior. O Rio Loa, no norte do Chile, é um exemplo disso. Já um rio-base indica um fluxo que só recebe afluentes de ordem menor que a dele, o que define uma hierarquia fluvial.

Um rio capturado tem seu volume parcialmente roubado, ao longo do curso, onde são comuns processos chamados de “decapitação”. Essa é uma ocorrência normal nas malhas hidrográficas, resultado da concorrência entre os cursos fluviais. É o que ocorre, por exemplo, com os rios Meuse e Mosela e o Petite Morin em relação ao Marne, na bacia de Paris. Já um rio composto tem esse nome por fluir em áreas com diferentes estruturas geológicas, enquanto um rio de foz suspensa exibe um nível de base ‒ o ponto mais baixo que um rio pode atingir ‒ inferior ao do rio principal, de que é um afluente. Ou do oceano.

Um rio decapitado é aquele que teve suas fontes, ou seu alto curso, sequestrado, confundindo-se com um rio capturado. E um rio efêmero tem vida temporária, ou descontinuada, por razões ambientais. Já um rio efluente recebe abastecimento continuado do subsolo, principalmente em regiões úmidas. E um rio emissário tem origem em um lago, ou lagoa, caso do Rio do Peixe, em Senador Amaral, que, como o Ribeirão das Antas, também deságua no Itaim, pouco depois da divisa de Cambuí-Estiva.

Um rio equilibrado, conceito inspirado na biologia, atingiu um estágio de estabilidade. Neste caso, a carga de detritos rochosos que integra seu fluxo é compensada pelo que sai. E um rio – como um humano – também pode ser inadaptado, ao menos do ponto de vista da hidrologia. Neste caso, ele não é proporcionalmente relacionado ao porte do vale por onde flui. Esse processo pode ocorrer tanto em casos em que o fluxo do rio supera o tamanho do vale ‒ e o rio tenderá a escavar o vale para satisfazer sua necessidade de escoamento ‒ como quando o fluxo for inferior às dimensões do vale. Há ainda rios influentes, que perdem continuamente água para o subsolo, processo típico de regiões secas. E rios intermitentes, ou temporários, que vertem suas águas apenas durante o período de chuvas, como ocorre no interior do sertão nordestino. Em oposição aos rios intermitentes, há os perenes, em que o leito menor ‒ onde as águas correm permanentemente, caso dos rios típicos do Sudeste brasileiro ‒ beneficiados por um fluxo constante e relativamente regular de chuvas. Existe, ainda, o que hidrólogos identificam como um rio primitivo, com fluxo definido pela direção das camadas rochosas que seu curso percorre. Nessa condição, um rio é consequente apenas em relação à topografia, segundo o declive do relevo em que está presente, e pode cortar relevos em direção contrária ao fluxo. Assim, é consequente apenas em relação ao relevo.

Bem diferente dos rios perenes que ocorrem no Sudeste, existem os rios subterrâneos, que cobrem parte do percurso encobertos. Eles são típicos de áreas com rochas solúveis, como o calcário, entre outras. Aparentado, de certa maneira, com os rios subterrâneos, existem os rios sumidos, engolidos por rocha calcária, formando um vale seco, estrutura que exibe um leito temporariamente ou permanentemente seco, por efeito de um conjunto de razões, entre elas a presença de rochas calcárias. Um rio temporário é o que tem um curso d’água não permanente, típico do sertão nordestino. Mas, secos à época das estiagens, podem retornar com a abundância das chuvas, quando chegam a ser torrenciais a ponto de provocar inundações. Populações das caatingas se referem a eles como “rios que cortam”, no sentido de deixar de existir temporariamente.

Praticamente impossível falar dos rios temporários sem referência à bela descrição de Câmara Cascudo para um retorno dessas águas: “Chegavam as notícias. Vem da Malhada Vermelha. Passou o Mufundo. Vem de barreira a barreira a toda largura. Nas fazendas ribeirinhas os foguetes subiam, pipocando no ar, festejando, avisando a chegada da água viva e sonora. Nós todos íamos esperar o rio, como Mistral foi atrás do Sol, querendo encontrar o cortejo dos Reis Magos. Ansiosos, apertando as mãos, gritando ao menor rumor, aguardávamos a vinda do deus, um deus difícil e cruel, pedindo iniciação de anos terríveis para as alegrias de sua hospedagem triunfal. Foguetes mais próximos. Gritos. ‘Lá vem! Lá vem! ’ Era a cabeça do rio, a primeira onda, suja, fulva, furiosa, macaréu raivoso, empurrando as galhadas, árvores arrancadas, corpos de reses, flores, nódoas verdes dos roçados arrebatados no fragor da enchente, tudo confuso, enrodilhado de espuma, torvelinhando no escachôo irresistível das primeiras águas infetuosas. Lá se ia a cabeça do rio, revolvendo a terra do álveo, ganhando as ribanceiras, mugindo, pateando como os cavalos clássicos nas ribas que se alagavam, tornando lagoas os barrocais, vestindo de prata o cinzento anegrado das estradas próximas. Lá se ia, amplo e bestial, em sua fuga para o mar longínquo que nunca tínhamos visto. Depois era água serena, mansa, igual numa tranquilidade convidativa de aproximação e uso, substituindo o estridor da enchente na descida pela majestade doce, imensa, um murmúrio persistente e musical que nos adormecia, felizes, no fundo das redes, nas camarinhas. Subia, então, a orquestração fremente da saparia, contraltos e tenores, sopranos e baixos, teimando a noite inteira”. Mas não é tudo. Há ainda rios brancos e negros. No primeiro caso estão os fluxos que transportam grandes volumes de sedimentos e que, segundo Teixeira Guerra, deveriam ser chamados de “amarelos”, como ocorre com o Hoang-Ho (Rio Amarelo), na China. No Brasil, os rios Amazonas, Trombetas, Madeira e mesmo o Branco, são exemplos disso. Já os rios negros, que na verdade são transparentes, se observados em um recipiente, resultam da dissolução de ácido húmico, produzido pela decomposição da matéria orgânica vegetal.

Comparado a essa ampla família de rios, o Ribeirão das Antas é quase um camaleão. Ele altera a cor de suas águas de acordo com a estação do ano. Ao longo das estiagens, quase sempre durante o inverno, suas águas tendem a um tom claro, ligeiramente esverdeado – ou turvo pela poluição, no trajeto urbano. Com a descarga das pesadas chuvas de verão, no entanto, as terras nuas e expostas à erosão ‒ e mesmo as margens desprovidas das antigas matas ciliares, mecanismos naturais de defesa contra o assoreamento e a degradação ‒ tingem as águas de amarelo ou vermelho, dependendo da natureza do solo erodido.

O Ribeirão das Antas tem, ainda, uma relação particular com o Rio do Peixe, antes mesmo que possa encontrá-lo, já somado ao Itaim. Ocorre que parte da captação da água para abastecimento da cidade de Cambuí é feita no alto curso do Rio do Peixe e essas águas, após o uso, são descartadas no leito do Ribeirão das Antas, contribuindo para aumentar seu reduzido volume atual.

Mas mesmo o Rio do Peixe tem suas características próprias e elas são basicamente duas, relacionadas às características de sua nascente, a Lagoa Grande. A primeira delas é que essa nascente verte para duas bacias hidrográficas, o que é incomum: a sudeste corre para o sistema Piracicaba-Alto Tietê e, a nordeste, dá origem ao Rio do Peixe, que desce a serra encachoeirado em vários pontos; em outros, forma corredeiras, antes de fundir-se com o Itaim. Mas a segunda característica dessa nascente seria ainda mais intrigante: a Lagoa Grande pode ser o remanescente de um lago glacial. Afirmar que isso seja um fato, evidentemente, exige pesquisas científicas, mas as características locais são significativas neste sentido.

O local em que está situada a Lagoa Grande caracteriza os chamados campos de altitude, típicos dos pontos montanhosos mais elevados que se soergueram, em particular, durante o Terciário, período do Cenozoico, era geológica com início há 65 milhões de anos e que se estende até agora. De origem grega, essa palavra tem o significado de “vida recente”. Ao longo dessa era, a superfície da Terra assumiu sua feição atual. No Sudeste brasileiro, campos de altitude aparecem nas serras da Mantiqueira, Caparaó e do Mar. Em Senador Amaral, a ocupação por não-índios se deu a partir do avanço das bandeiras que partiram de São Paulo, formando proto-vilas que garantiram sobrevivência pela atividade agropecuária. Em Senador Amaral – que integrou o município de Cambuí até os anos 1970 – ao lado de uma incipiente indústria agroalimentícia, a produção agrícola está concentrada nas lavouras de brócolis, mandioquinha-salsa, milho e frutas, caso do morango e “amoras-pretas” (mirtilo) e mesmo flores, após uma dedicação intensiva de uma atividade menos especializada, a produção de batata. O planalto em que a Lagoa Grande está localizada eleva-se a mais de 1.500 metros, com temperaturas amenas no verão, mas que podem chegar a negativas no inverno. Esta é uma área que pode ter abrigado gelo espesso durante a última era glacial, encerrada há aproximadamente 15 mil anos, com o início do atual período interglacial, com temperaturas médias globais mais elevadas.

Os campos de altitude, que para alguns autores se equivalem a campos rupestres, são típicos dos pontos mais elevados entre as montanhas que subiram ao longo do Terciário ‒ primeiro dos dois períodos do Cenozoico nas serras do Mar e da Mantiqueira, situados quase sempre acima de 1.500 metros de altitude. No Sudeste do Brasil, os campos de altitude estão localizados entre as coordenadas 20º a 22 º de latitude sul e 41º a 44º de longitude oeste ‒ faixa bem próxima de Senador Amaral, com 22º 35’ latitude sul e 46º 10’ longitude oeste ‒ o que torna a suposição de a Lagoa Grande ser remanescente de um lago glacial uma hipótese plausível. E isso faz da história da origem e evolução dos rios um relato tão fascinante quanto insuspeito.

O célebre Cacique Seattle ‒ a quem é atribuído o discurso mais lírico de um nativo americano em relação à Natureza ‒ lamentou profundamente a insensibilidade do homem branco à força vital e à magia dos rios. Líder dos suquamish e duwamish, no território que hoje é o estado americano de Washington, o Cacique Seattle expôs, em 1854, a um representante do governo interessado na compra de suas antigas terras, as razões que explicam o fato de um “homem branco não ter coração”, no sentido alegórico dessa expressão. Após pousar a mão sobre a cabeça do representante do governo do presidente Franklin Pierce, o líder indígena começou sua longa fala repleta de sentido poético e a certa altura disse: “esta água brilhante que corre nos rios e regatos não é apenas água, mas o sangue de nossos ancestrais. Se vendermos nossas terras, vocês deverão lembrar-se de que ela é sagrada e ensinarão seus filhos que ela é sagrada. Que cada reflexo na superfície de um lago é a memória de acontecimentos e recordações da vida de meu povo”. A “sonoridade das águas”, acrescentou o chefe indígena, “é a voz do pai do meu pai. Os rios são nossos irmãos e saciam a nossa sede. Os rios transportam nossas canoas e alimentam nossos filhos. Se vendermos nossas terras a vocês, deverão lembrar disso e ensinar seus filhos que os rios são irmãos nossos e também irmãos de vocês. Deverão dedicar a eles o carinho e o afeto que oferecemos a um irmão”.

Se tivesse conhecido o Ribeirão das Antas – mesmo quando ele já não exibia seu vigor primitivo, mas ainda inundava suas várzeas, abrigava canoas e uma diversidade peixes e pudesse comparar ao que ele é hoje – o chefe Seattle se convenceria definitivamente de que o homem branco realmente não tem coração.

O chefe Seattle, que definia a si mesmo como um “homem selvagem” não teve tempo de saber, pelos relatos da Ciência, que a água é uma produção precoce no Universo. Apenas 1 bilhão de anos depois da explosão primordial, o Big Bang, que deu origem ao Cosmos, já havia uma profusão de água em meio às estrelas, reunidas em imensos enxames cósmicos que os astrônomos chamam de galáxias, como a Via Láctea, que abriga em um dos seus braços o Sistema Solar. A razão da precocidade cósmica da água, e quanto a isso o chefe Seattle poderia sorrir com certo espanto, está no fato de as estrelas de grande massa, que nasceram nos primeiros tempos do Universo, terem evoluído muito rapidamente, ainda que isso signifique milhões de anos. Ao final de suas vidas, como ocorre ainda hoje, elas explodiram sob a forma de supernovas e liberaram enorme quantidade de elementos químicos no espaço, incluindo o oxigênio. Como uma molécula de água é formada por dois átomos de hidrogênio e um de oxigênio (H20) e o hidrogênio sempre foi o gás mais abundante no Universo, a água pode se formar como obra do que o cacique Seattle e outros povos nativos americanos identificaram como o “Grande Espírito”.

Em 2011, e isso certamente surpreenderia o cacique Seattle, astrônomos americanos identificaram um quasar, o núcleo de uma galáxia muito antiga, a 12 bilhões de anos-luz do Sistema Solar, abrigando um volume de água pelo menos 140 trilhões de vezes o que existe na Terra, estimado em 1,3 bilhão de km³. Se pudesse saber disso, o velho líder indígena também saberia que regiões do céu, como a Nebulosa de Órion, na constelação do mesmo nome, de que povos indígenas e outros povos antigos se serviram durante milênios para suas locomoções a grandes distâncias, é também uma enorme fonte cósmica de água. Então, contemplando rios em agonia, mutilados e desrespeitados pelo homem branco, para quem o dinheiro está acima de tudo, o velho líder teria a evidência definitiva de que essas criaturas não apenas não têm coração. Elas podem também não ter futuro.

Em breve:

A febre ardente do ouro

Os pesados tributos do rei

A invenção das Minas Gerais

PARTE 2 - DA TERCEIRA MARGEM DO RIO

Construção de caminhos

À espera do trem (que nunca chegou)

Mudanças no estilo de vida

Descobertas (surpreendentes) de uma viagem no tempo

Heranças legadas pela História

Imagens em preto e branco

Uma rebelião local, a derrubada da iluminação pública

Uma janela para o mundo

O surpreendente fluxo do tempo

Cossacos no Ribeirão das Antas

Sangue, suor e lágrimas

Uma brevíssima história do futuro

Bibliografia